Contos sobre a Cratera Perdida (Guatemala): A Moeda de Tempo

"Conta-se que na Cratera há uma moeda de tempo.

Quando uma pessoa nasce é-lhe dado um dote de 300 horas para ela gastar como e quando quiser a partir do momento que chega à maioridade, aos 14 anos. Conta que no início dos tempos na Cratera apenas se podiam trocar serviços e bens directamente, mas segundo reza a lenda, há milhares de gerações atrás, depois de uma catástrofe sobre a qual pouco se sabe (embora muito se teorize), em que as trocas entre as pessoas se tornaram mais necessárias, pensou-se que se poderia criar um meio de troca para tornar as transacções mais fáceis: uma moeda. Definiu-se que ela representaria os preços das coisas consoante o tempo necessário para executar uma função ou produzir um bem.

Os preços são, dessa maneira, dados em horas, sendo os seus cêntimos, minutos (no máximo 60 por hora). A evolução natural das coisas fez que os preços fossem mudando, e assim a relação inicial entre horas de trabalho e o preço do bem vendido - que tinha uma conexão directa com a realidade prática - foi-se perdendo, tornando-se num puro sistema de valor, totalmente abstracto, vivendo por si mesmo no acumular misterioso da experiência da troca, evoluindo os preços consoante as tendências e os acasos de cada momento, as disponbilidades de quem quer comprar, as exigências de quem quer vender. Era um mercado livre de tempo.

Dada a impossibilidade de expansão produtiva por se estar num espaço tão definido e conhecido (a Cratera não tinha mais que 20 kilometros de diâmetro), pensou-se que bastava uma relação constante entre moeda e habitantes, que se se criasse mais moeda,que isto apenas levaria a um aumento dos preços e não do bem-estar das pessoas. É que, segundo a teoria inicial, é possível produzir outras coisas, isto é, utilizar o tempo ou recursos de outras maneiras, mas não é possível produzir mais ou em maior valor: a única coisa que tem valor é o tempo livre disponível.
O tempo tornou-se a moeda porque ele é a única coisa na Cratera que não é finita, que não tem início nem fim, que se pode acumular ilimitadamente. É que lá, nesse buraco perdido, existem, sem se saber porquê, centenas de línguas e religiões. Pensa-se que cada família tem as suas, mas especula-se que pode ser na verdade cada pessoa. A única coisa que partilham e que é transversal a todos eles na sua experiência do mundo é o contexto físico: vivem num pequeno círculo rodeados por uma barreira intransponível de montanhas, e isto levou à crença comum de que o tempo é a única possibilidade de contacto do homem com o infinito. Utilizar o tempo, ou o que nele se projecta, foi a única maneira que se encontrou para fazer com que todas as pessoas, independentemente da sua origem cultural, acreditassem no valor simbólico da moeda, a precondição para ela existir.

Na prática é como se a sociedade oferecesse a cada cidadão 300 horas do tempo de todos os habitantes, como um vale de boas-vindas, que era suficiente para ajudar a recuperar a casa de um recém-falecido para onde o recém-adulto iria viver para começar a sua vida e para outros serviços que lhe poderiam ser necessários ao príncipio para se estabelecer. A boa vontade era fácil porque, por um lado, 300 horas por pessoa significava apenas 5 minutos por habitante, por outro, ninguém era obrigado a dar esse tempo: só se aceitasse as condições e o tempo que recebesse de troca.
Por fim, na Cratera, quando alguém morre, põe-se o corpo num caixão de vidro, que é deixado a boiar no lago de sal durante 3 dias. Os braços são colocados ao longo do corpo e as mãos são deixadas abertas com as palmas viradas para cima. Diz-se que assim é uma forma de se relembrar que no final, por muito que uns tenham adquirido muitas coisas, que todos terminam iguais, de mãos vazias, e o mais que uma pessoa pode acumular durante a vida é o tempo, e sua acumulação é sinal de que se atingiu alguma coisa. Assim, quando alguém morre, o tempo que não se gastou não vai ser herdado por ninguém. Em honra ao falecido, esse tempo vai para um templo para ficar guardado num memorial no coração da caótica Cidade-Mundus que ocupa densamente todo o vale. Lá se acumula todo o tempo que ao longo da história daquele povo múltiplo foi poupado.
História de acasos e imprevisibilidades: diz-se que nunca houve outra moeda tão duradoura na história da humanidade, que tenha tido sempre as mesmas regras desde os primeiros registos até aos dias de hoje, necessitando para existir de apenas um pedaço de cartão onde se registam as transferências, com assinaturas de ambas as partes, e que se pode renovar quando fica cheio. E nunca nenhum outro meio de troca se tornou tão desprezado por uma sociedade como a moeda de tempo, que gradualmente passou a ter um uso residual, preferindo as pessoas a troca directa ou a dádiva, deixando a moeda para ser utilizada quando é absolutamente indispensável: quando as troca têm de ser feitas com um inimigo ou com alguém com quem não se tem nem se quer dar confiança. Isto é, tudo o resto não é considerado perda de tempo, mas simples consequência de se estar em vida."
encontrado, transcrito e traduzido por filipe dias De de, cap. VII, "A Moeda de Tempo", in "Contos sobre a Cratera Perdida" (Guatemala), Autor Desconhecido